sábado, 6 de dezembro de 2008

Histórico

Durante um período de tempo de mais de 300 anos introduziram-se no Brasil entre 4 e milhões de africanos, transplantados forçosamente sobre o Atlântico das mais diversas regiões do continente africano.
Mesmo que sua contribuição à formação da nação tenha sido fundamental, as culturas africanas ainda não receberam, até hoje, o tratamento adequado pela historiografia do país. Lembro que hoje o Brasil é o maior país “africano” em população fora da África, estando em 2o lugar em números absolutos depois da Nigéria. Estes dados evidenciam o quanto o Brasil e a formação de sua cultura devem à contribuição africana. Mas vamos à música:
O samba, a capoeira, o maracatu e muitas outras manifestações brasileiras com evidentes traços africanos, são muito mais do que fenômenos puramente acústicos, ou seja, musicais. Estão intimamente vinculados a outras formas de expressão, como a dança, a padrões de movimento, a língua, a religião e são constituídas por elementos tão diversos que, muitas vezes, representam maneiras de vida e estratégias mesmo de sobrevivência de determinados grupos sociais. Sua dimensão não se limita, portanto, ao campo musical, na acepção estreita deste termo, mesmo porque não existe expressão nas línguas africanas que traduzisse exatamente o campo semântico do termo ocidental “música”. (Aliás, este é um problema que se coloca em muitas culturas fora do ocidente).
Vimos que, quando tratados, muitas vezes os fenômenos musicais brasileiros tidos como oriundos, culturalmente, do continente africano, são muitas vezes revestidos de adjetivos que em si refletem clichês de africanidade. Mesmo a pesquisa musical tem encontrado dificuldade em discernir objetivamente e a fundo onde estariam as características essências de todo um complexo musical afro-brasileiro. Temos aqui um campo onde ainda há muito por fazer.
O problema das fontes
Como é que tratamos hoje da história da música de origem africana no nosso país ? As fontes escritas dirigidas especificamente a esta música são esparsas até o início do Século XX. Muito menos encontramos registros em partituras musicais, salvo algumas excessões. Desta forma, pode-se afirmar que há basicamente dois procedimentos na pesquisa documental desta música, um de ordem essencialmente histórica e o outro de teor sistemático.
1. Documentar e avaliar fontes históricas: Fontes escritas, iconográficas, objetos, como instrumentos musicais etc. Do século XX temos também registros sonoros.
2. Documentação e avaliação sistemáticas de material de campo contemporâneas (registros áudio, filme, vídeo, fotos, dados empíricos, cultura oral etc.)
Dependendo do enfoque da pesquisa as fontes africanas e afro-americabas são comparadas a nível de igualdade. No caso da música, já não se pode mais falar em ”música tradicional“ como um todo, mas sim de tradições de determinado período e espaço cultural. Toda comparação requer, no entanto, cuidados especiais. A seguir alguns exemplos:
(1) Fontes escritas
A língua falada é registrada por antropólogos, mitos e literatura oral são anotados. A música, porém, é mais abstrata. Nasce e cresce no tempo, reflete uma organização bastante ou menos complexa, revela um conteúdo específico para determinadas pessoas ou então apela para o emocional e se acaba, passando em seguida à memória.
Mesmo assim descobrimos, se formos atentos, relatos surpreendentes. Jean B. Debret, o célebre artista e cronista frances que aqui esteve na primeira metade do Século XIX, faz uma observação, cuja leitura apropriada é reveladora. O autor refere-se às várias nações de origem dos negros escravos no Rio de Janeiro:
Reconhece-se de imediato nas ruas do Rio de Janeiro cada uma das nações africanas pelas danças e pelos cânticos dos negros (...). Quando é tomado pela saudade por sua pátria, um negro entoa uma cantiga e logo é secundado por outros, que contribuem com um refrão estranho, baseado em apenas duas ou três notas. Outros na roda participam marcando o compasso com palmas, uma longa, duas curtas (...). (Debret, 1834, minha tradução).
Debret observou aqui um padrão rítmico, que é batido com palmas no contexto cultural afro-brasileiro e que hoje se estendeu por quase todo o país. Podemos transcrever este padrão da seguinte forma:
(8) X . . X . X . .
x = pulsação percutida
. = pulsação muda (pausa)
Temos aqui a prova de um "time-line", um elemento essencial dentro da trama sonora do fazer musical africano, uma fórmula rítmica que orienta os demais músicos no conjunto, registrado muito antes da invenção do fonógrafo.
(2) Instrumentos musicais
Outros exemplos importantes de fontes históricas são iconografias em relatos de viagem ou em acervos de artistas. Já se conhece muitos outros ainda estão por serem analisados. No caso específico de práticas musicas, ganha importância o seu aspecto material, em primeiro lugar os instrumentos de música. Além de exemplares de instrumentos antigos em museus e coleções, a sua própria confecção contemporânea pode, em muitos casos, comprovar significativas ligações históricas com regiões específicas do continente africano. Ambos, a iconografia musical, como a organologia (o estudo de instrumentos musicais) são campos de pesquisa importantes dentro da Antropologia da Música.

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